Um conto de Natal - Santa Tereza Tem
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Um conto de Natal

Se dependesse somente dele, a filha provavelmente não acreditaria em Papai Noel

• Jorge Fernando dos Santos 

Elton afastou cortina e olhou a noite através da janela. A chuva não tardaria a cair. O céu estava completamente nublado e o vento desfolhava as árvores.

– Depressa, Eloísa – disse ele de pé no meio da sala, em frente à árvore de Natal. 

– Estou terminando de arrumar a Claudinha – disse a mulher lá do quarto, enquanto penteava a menina.

– Quero sair antes da chuva. O carro está com a bateria fraca.

 Saíram de casa minutos depois. Elton ao volante, Eloísa do seu lado, Claudinha no banco de trás.

 – Vou ganhar uma boneca, mamãe?

 – Claro que vai – Eloísa respondeu.

 – Vou ver o Papai Noel?

 – Se você ficar acordada…

 – É ele quem vai me dar a boneca, não é?

 – Claro que sim.

 – O senhor já viu o Papai Noel, papai?

Elton olhou-a pelo retrovisor. Se dependesse somente dele, a filha provavelmente não acreditaria em Papai Noel. Na sua opinião, alimentar esse tipo de fantasia era o mesmo que ensinar a criança a mentir.

– Não, filhota. Eu nunca vi o Papai Noel.

– Mas a mamãe falou que todo ano ele aparece lá na casa da vovó.

Elton pigarreou.

– Sim, ela disse.

– Pois então?

– Geralmente o Papai Noel chega tarde, quando todo mundo já está dormindo – Eloísa explicou.

A chuva começou a cair e Elton ligou o limpador de pára-brisa. Não demorou muito e os vidros ficaram embaçados.

– Mesmo com chuva o Papai Noel aparece? – perguntou a menina.

– Mas claro que sim – Eloísa respondeu. – Ele usa um guarda-chuva enorme.

O carro parou num sinal. Um relâmpago iluminou o céu e logo depois trovejou. Elton acendeu um cigarro.

– A chuva está engrossando – disse Eloísa.

– Só espero que o carro não morra – disse Elton, apertando o acelerador.

– Por que você não trocou a bateria?

– E eu lá tive tempo? Quando saí da loja, a oficina já estava fechada.

O sinal abriu e ele arrancou. Claudinha tocou o ombro da mãe e avisou que estava com sono.

– Se você dormir não vai ver o Papai Noel – disse Eloísa.

Mal ela terminou a frase e Elton pisou fundo no freio, brecando de uma só vez. Os pneus cantaram no asfalto molhado, o carro dançou na pista e o motor afogou.

– Deus do céu, homem! O que foi isso?

– Um maldito vira-lata. Por pouco não o atropelei.

Elton girou a chave. O motor rateou, rateou e não pegou.

– Droga…

A chuva prosseguia pesada e o carro ali, parado no meio da rua.

– Não podemos ficar aqui – disse Elton depois de girar a chave três vezes sem obter sucesso.Colocou o carro em ponto morto, subiu a gola da jaqueta e abriu a porta.

– O que você vai fazer? – Eloísa perguntou.

– Preciso empurrá-lo para o acostamento. Segure o volante para a direita.

Eloísa torceu o volante e Elton empurrou o carro até estacioná-lo junto ao passeio, sob a luz de um poste. Depois voltou ao seu lugar e bateu a porta. Passou as mãos nos cabelos molhados, empurrando-os para trás. Em seguida, girou a chave mais uma vez e novamente o motor não pegou.

– O que vamos fazer? – disse Eloísa. – Já são mais de onze horas.

– Se você não demorasse tanto para se arrumar, a gente já teria chegado.

– E se você tivesse trocado a bateria não estaríamos parados aqui.

– Mamãe, tô com sono – disse a menina.

Eloísa pegou-a no colo. Não demorou muito, ela adormeceu.

– A chuva está muito forte – disse Elton num tom resignado. – Assim que ela diminuir eu dou uma olhada na bateria. Se não adiantar, o jeito vai ser pegarmos um táxi.

– Táxi? Na noite de Natal e com essa chuva? Vai ser muito difícil…

Passaram-se quinze minutos. Elton fumou dois cigarros. Eloísa quis ligar o rádio, mas ele a impediu alegando que precisariam de toda a energia que a bateria pudesse armazenar. Pegou outro cigarro no bolso da jaqueta.

– Fumar desse jeito não vai resolver o problema –  disse Eloísa. 

Ele recolocou o cigarro no maço e abriu a porta.

– Semana que vem vou comprar um telefone celular. Seria muito útil numa hora dessas. – comentou Eloísa.

– Esse povo não tem mais o que inventar… A chuva está diminuindo – observou Elton. – Vou olhar a bateria.

– Espere estiar ou vai ficar ensopado.

– Não podemos passar a noite aqui, Eloísa. Preciso fazer alguma coisa.

Abriu o capô, curvou-se sobre o motor e mexeu na bateria, beneficiando-se da luz de mercúrio do poste.

– Gire a chave – ordenou à mulher, que prontamente o atendeu.

O motor não funcionou. Elton ficou irritado e bateu o capô com toda força.

– Merda!

Claudinha acordou assustada.

– E o Papai Noel, não vai me dar uma boneca?

– Mas claro que vai – disse Eloísa.

Elton entrou no carro quase desesperado. Meia-noite se aproximava e a rua estava completamente deserta.

– Mamãe deve estar preocupada – ele comentou.

– Do jeito que ela é, deve estar pensando no pior – acrescentou Eloísa.

Sem perceber o que se passava,Claudinha adormeceu novamente. “Nada como ter três anos de idade” – disse Elton de si para si. Mal concluiu o pensamento, avistou um vulto atravessando a rua alguns metros à frente.

– Até que enfim apareceu alguém – exclamou. – Vou ver se consigo ajuda.

Saiu do carro e correu na direção do outro. Era um homem gordo vestido de Papai Noel. Numa das mãos levava o saco de presentes e com a outra segurava o guarda-chuva.

– Por favor – Elton quase gritou.

O homem parou e girou nos calcanhares.

– Pois não…

Elton explicou o que estava acontecendo. De dentro do carro, Eloísa assistia à cena rezando para serem ajudados pelo estranho. Sentiu-se aliviada quando o viu se aproximar na companhia do marido. 

O homem pediu a Elton para abrir o capô, mexeu nas velas da bateria e mandou que girasse a chave. O motor pegou na primeira tentativa.                                                                                                                        

O homem fechou o capô. Claudinha acordou e, ao vê-lo através do pára-brisa, esfregou os olhos sonolentos.

– Papai Noel!

Ele veio até à janela e Eloísa abaixou o vidro.

– Mas que linda garotinha – disse o estranho com uma voz rouca, voz de Papai Noel.

– O senhor trouxe a minha boneca?

– Mas claro que sim.

Apoiou o guarda-chuva aberto no capô do carro, enfiou a mão no saco de cetim e retirou uma caixa embrulhada para presente.

– Aqui está…

Claudinha desfez o embrulho, abriu a caixa e sorriu. Elton e Eloísa ficaram boquiabertos. A boneca era igual à que eles tinham comprado para a filha, e que estava guardada na casa da avó para ser entregue na hora da ceia.

– Feliz Natal para todos – disse o homem, retomando seu caminho.

– Obrigado pela ajuda – Elton quase gritou. Depois arrancou o carro bem a tempo de ver o homem entrar numa velha casa, pouco antes da esquina. – Ele disse que está levando presentes para as crianças que moram ali. É uma espécie de creche ou abrigo para menores de rua.

No dia seguinte, de volta para casa, resolveram visitar o lugar. Elton imaginou que a boneca dada pelo homem a Claudinha poderia fazer falta a uma daquelas crianças. Eloísa concordou que seria justo dar de presente a boneca que haviam comprado.

Uma velha senhora atendeu à porta.

– Pois não…

Elton explicou o que havia ocorrido e a mulher ficou estupefata. Antes que ela dissesse alguma coisa, Claudinha, de mãos dadas com a mãe, apontou um retrato na parede da sala:

– Olha, mamãe, é o Papai Noel!

O homem do retrato, fantasiado de Papai Noel e rodeado de crianças, era o mesmo que havia estado com eles na noite anterior.

– O homem da foto mora aqui? – Eloísa perguntou.

– Morava – disse a velha. – Fundou e manteve esta casa durante muito tempo.

– E onde podemos encontrá-lo? – Elton quis saber.

A velha não conseguiu esconder a emoção.

– Ele morreu atropelado há sete anos, numa noite de Natal.

Jornalista, escritor e compositor, tem 46 livros publicados. Entre eles, Palmeira Seca (Prêmio Guimarães Rosa 1989), Alguém tem que ficar no gol (finalista do Prêmio Jabuti 2014), Vandré – O homem que disse não (finalista do Prêmio APCA 2015), A Turma da Savassi e Condomínio Solidão (menção honrosa no Concurso Nacional de Literatura Cida

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